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14 de jul. de 2013

Depoimento: Minha Vida Borderline



Meu nome é S. e eu tenho 20 anos. O primeiro evento da minha vida que eu tenho lembrança se passa na cozinha da minha antiga casa, eu tinha uns 4 anos e meu irmão, de dois, havia me mordido nas costas e no braço direito, com tanta violência que eu lembro até hoje o cheiro forte de pomada que minha mãe passava e da aparência da minha pele, esverdeada e roxa acompanhando as marcas da mordida. Eu choro e minha mãe não diz nada, meu irmão nos observa ao longe como um fantasma, esperando minha mãe virar as costas para voltar a me atormentar. Durante minha vida inteira meu irmão fez um ótimo trabalho em me perseguir, machucar, magoar e destruir qualquer resquícios de autoestima que eu pudesse ter.

Minha segunda lembrança se passa por volta dos 5 anos de idade. Lembro de já nessa época eu me sentir estranha na presença do meu pai, sentia que ele me olhava diferente de como olhava para meu irmão, tinha a impressão de que havia algo de muito errado comigo. A lembrança se passa no meu quarto, ainda na antiga casa, é dia, mas como a janela está fechada e a luz apagada, o quarto se encontrava um pouco escuro. Estou na minha cama me masturbando. Não sabia que mexer ali se chamava masturbação, mas sabia que por algum motivo aquilo era "errado", imagino que aos 5 anos minha mãe já tivesse me ensinado isso, e, por isso, eu estava nervosa. Meu pai aparece na porta do meu quarto e eu congelo. Ele fica por longos segundos simplesmente me olhando daquele jeito estranho, então entra e fala algo que eu não me lembro muito bem, algo sobre aquilo ser errado e que eu não podia contar para a mamãe se não ela ficaria muito triste. Ele se aproxima e tudo parece se passar em câmera lenta, quero que ele vá embora, estou assustada, lembro claramente. Ele coloca a mão dentro das minhas calças e então... Nada. Não me lembro de mais nada. Depois disso vem uma sucessão de imagens e memórias confusas e quebradas. Lembro remotamente de várias situações estranhas, comportamentos estranhos do meu pai, mal-tratos por parte do meu irmão, indiferença por parte da minha mãe.

Meus pais trabalhavam muito quando eu era menor e durante o dia eu era criada pela minha avó e tia avó. Minha avó costumava dizer que eu era gorda de mais para ser amada, que eu nunca seria boa o bastante como minha mãe, que eu nunca tocaria piano como ela, nunca seria pianista da igreja. Ela me proibia de brincar por eu ser mulher e por achar que mulher deveria só aprender a cuidar e limpar da casa. Minha avó dizia que Deus não havia me dado o dom para a música... E eu adorava a música, mas toda a vez que meus dedos tocavam no teclado do meu piano, as palavras da minha avó enxiam a minha mente e eu errava e errava até qualquer um desistir de me ouvir ou me ensinar.

Na escola tinha dificuldade para fazer amigos, sempre fui introspectiva, tímida, quieta, insegura e medrosa. Até hoje tenho dificuldades de socialização, até hoje quando algum estranho vem falar comigo meu coração bate acelerado e eu tenho vontade de sair correndo. Tenho medo das pessoas, como um animal selvagem, não confio no ser humano. Alias minha avó também costumava me chamar de bicho do mato porque eu fugia e me escondia quando via pessoas estranhas. Eu costumo construir um muro entre mim e o mundo exterior e não deixo ninguém entrar. É meu modo de me proteger de alguma forma. Sou a vítima clássica para todo o tipo de bullying, indefesa e inofensiva, do tipo que se irrita facilmente, o que arranca boas risadas dos atormentadores. Todo o tipo de pessoa já riu as minhas custas, é muito fácil me humilhar e muitos já fizeram isso para se sentirem melhor consigo mesmo.

Aos 8 anos minha família se mudou para um prédio e foi lá que minha vida, que já podia se considerar um inferno, conseguiu piorar mais ainda. No dia que descobri que me mudaria para um prédio eu fiquei muito feliz, imaginei que ali morariam várias crianças e quem sabe, com sorte, eu conseguiria fazer amizades. Não demorou muito para eu perceber que fazer amizades não era nada simples independente do lugar onde eu estivesse. Meu prédio tinha uma quantidade bem grande de crianças, de todas as idades, todas soltas nos espaços comuns do prédio, sem a fiscalização de nenhum adulto. Eu e meu irmão rapidamente nos tornamos as vítimas preferidas da maioria dos nossos coleguinhas, que nos perseguiam incansavelmente. Fui xingada de tantos nomes que já nem me lembro mais. Sofri agressão verbal, física e sexual diversas vezes. Em casa havia um fantasma em volta da palavra "sexo" por causa do meu pai e fora de casa, existia milhões desses mesmos fantasmas. Eu não estava segura. Em lugar nenhum. Onde quer que eu me virasse, existia alguém para rir de mim, me humilhar, me bater e me abusar sexualmente. Eu fugia de casa, fugia do prédio, fugia da escola, sem nunca chegar a lugar algum onde eu pudesse simplesmente sentar em paz e respirar livremente, sem criança, rir, enfim, crescer de forma saudável.

As perseguições mais intensas no prédio duraram até mais ou menos meus 12 ou 13 anos. Lembro do dia em que as coisas ultrapassaram qualquer limite que eu ainda pudesse ter... Lembro de estar na sala do meu apartamento e caminhar em direção a varanda. Quando cheguei na entrada da mesma ouvi as risadas de um grupo de meninas que costumava me humilhar muito, elas provavelmente estavam no apartamento de baixo do meu. Aquelas risadas, mesmo naquele momento não sendo direcionadas para a minha pessoa, me destruíram. De repente, tudo o que eu estava guardando já há anos veio a tona e eu desabei. Cai no chão e comecei a chorar tanto, mas tanto que foi difícil continuar respirando. Fiquei ali um bom tempo, chorando tudo o que eu tinha para chorar, todas as lágrimas que eu não me permitia derramar. As meninas no andar abaixo ouviram e ficaram em silêncio ouvindo meus soluços desesperados, pela primeira vez elas ficaram em silêncio. A partir desse dia elas começaram a pegar mais leve nas "brincadeiras"... Pena que os meninos não ouviram minha dor. Eu parei de chorar, depois de um tempo eu parei... E só voltei muitos anos depois, aos 17 anos. Aos 17 anos tive outra crise, uma crise tão forte, tão complexa, tão destrutiva... Uma crise que até hoje não consegui me livrar. Uma crise chamada Transtorno de personalidade Borderline. E aos 19 anos, outra crise se juntou a essa. Uma crise chamada Esquizofrenia.

Dos 13 aos 17 anos minha vida foi melhorando e eu piorando gradativamente. Aos 14 anos já tinha fama de bipolar na escola devido meus picos de humor cada vez piores, entre a euforia e a depressão profunda. Eu não era mais abusada sexualmente, mas os resquícios da minha infância até hoje nunca me deixaram e eu nunca deixei de ser uma pessoa extremamente traumatizada. Tentei várias vezes me relacionar com meninos, todos os relacionamentos foram um fracasso. Eu odiava eles, todos eles, todos os homens do universo. Aos 16 foi a última vez que fiz sexo com um homem. Foi devastador. O peso do universo sobre meus ombros, eu tremia e chorava só de pensar, a vergonha, a culpa, o medo... Eu queria me matar, eu preciso me matar. Aos 17 comecei a me cortar e algo finalmente se quebrou para sempre dentro de mim. De repente a S. que todos conheciam sumiu e eu assumi uma personalidade completamente estranha, absurdamente instável, agressiva, paranoica, auto destrutiva, suicida, isolada... Um monstro. O monstro tinha nascido dentro de mim e assumido total controle sobre meus atos, sentimentos e pensamentos.

Perdi todos meus amigos. Quase fui expulsa da escola. Ganhei fama de suicida maluca na mesma. Comecei a ficar com garotas. Me cortando cada vez mais e mais e mais. Comecei meu tratamento com psiquiatra e psicóloga, remédios cada vez mais fortes, doses cada vez mais altas. Aos 19 anos fui internada pela primeira vez, já com crises de despersonalização, alucinações e delírios persecutórios e de auto percepção. Saí da internação com o diagnóstico de Esquizofrenia. Aos 20 (esse ano) fui internada novamente. No momento faço Hospital-dia... Minha vida não é nada fácil, enfrento muitas dificuldades no meu dia a dia, mesmo nas atividades mais básicas como simplesmente manter uma conversa, conhecer gente nova, fazer trabalhos em grupo, ser independente, responsável e racional... Tudo é difícil. Eu preciso ser ensinada como uma criança a lidar com o mundo e vira e mexe eu esqueço e temos que recomeçar tudo de novo. A única coisa que eu tenho facilidade na vida e o que muitas vezes me ajuda a sobreviver é escrever. Eu amo escrever. É meu modo de me comunicar com o mundo. O que eu tenho a dizer, nunca sai da minha garganta, mas sim pelas pontas dos meus dedos.

Meu CID-10 é f.60.3 e f.20.0. Ou seja, Transtorno de personalidade Borderline e Esquizofrenia Paranóide.

No momento tomo Quetiapina (800mg), Rispiridona (4mg). Depakote (1000mg), Venlafaxina (150mg) e Clonazepam (2mg).

Meu nome é S. (ou Monstros, se você me conhecer bem o bastante).

8 comentários:

  1. olá, sa***na eu sou da sindrome de asperger. seu nome está escrito no texto.

    mas eu nao parei para dizer isso.

    estou aki comentando pra dizer que eu sofri mto na minha vida.

    cheguei ao ponto de beirar a loucura.

    talvez eu tenha qse chegado a ser border, mas eu estou pesquisando.

    nao entendo ainda de criteris DSM , mas ... espero me ajudar.

    vc nao está sozinha. é triste viver, e triste existir.

    sei q sofri de depressao por mais de 10 anos.

    att,

    dASbr.

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  2. Olá Elain,
    É difícil responder a tudo que escreve, para o fazer é necessário conhecimentos, no entanto, penso que ter uma amor permanentemente ajuda a ultrapassar a doença.

    Abraço

    ag

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  3. vc já. é uma vencedora...e lindos dias virão ...acredite ,pois aconteceu comigo!

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  4. Esse depoimento é fortíssimo, me fez chorar. Não sei o que dizer... mas posso dizer que uma parte dessa história, e talvez uma parte bem pequena diante de tudo que ela contou, eu entendo e conheço. Neste momento peço a Deus que dê a esta jovem forças para vencer a batalha de todos os dias que é sobreviver. E que não desista nunca da vida, porque em algum momento ela deve valer a pena. Esperança sempre.

    Bj

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  5. Que texto lindo e forte. "S" você não está sozinha nessa, me identifique bastante principalmente na parte de não ter mais amigos e ser chamada de maluca. Vamos vencer.

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  6. Eilan, eu não suporto ler casos de abuso sexual de crianças. Me faz passar mal... É algo que deveria ser punido com a pior das penas, pois a criança que sofre isso nunca mais vai ter a mesma vida...
    Mas isso acontece e esse post mostra o quanto uma vida pode ser destruída pelo abuso,pelo descaso, pelo bullying. E também mostra que ninguém tem boderline por que quer...
    Mudando de assunto, pq vc não tenta fazer um porta lápis daquele? Eu ia adorar ver seu trabalho. Um grande bj

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  7. Oi, nossa, eu sofri muito com esse depoimento... Vejo muitas pessoas reclamarem por nada e vejo que você passou e tem passado por tantas e está aí de pé! vc já pode se considerar uma pessoa CAMPEÃ! Sabe, eu tenho a bíblia como referência para minha vida, Jesus talvez possa ser para muitos um assunto chato ou um homem que nada faz pela humanidade, mas Ele veio a este mundo quando tudo estava perdido, estávamos entregues ao demônio por causa do pecado. Mas Jesus deu sua vida na cruz para que pudéssemos hoje ter direito à salvação. Ele se fez carne e sentiu todas as nossas dores e fraquezas, mas as venceu... Deus é o caminho, achegue-te a Ele em oração todos os momentos de sua vida, tudo que tens passado coloque nas mãos do Senhor que Ele te ajuda e te sustenta. Saiba que Jesus te ama e te conhece desde o ventre de sua mãe, ele tem um propósito maravilhoso para você que é te mostrar a felicidade verdadeira. Louve-o com louvores, o louvor é oração, é gratidão, e verá sua vida mudar para melhor a cada dia. Além da bíblia sugiro você ler os livros de Augusto Cury, são maravilhosos, talves vc já conheça. "Ser livre é não ser escravo das culpas do passado nem das preocupações do amanhã. Ser livre é ter tempo para as coisas que se ama. É abraçar, se entregar, sonhar, recomeçar tudo de novo. É desenvolver a arte de pensar e proteger a emoção. Mas, acima de tudo, ser livre é ter um caso de amor com a própria existência e desvendar seus mistérios."
    Augusto Cury.

    Um beijo de paz e lindos dias que te esperam...

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  8. Me solidarizo com sua dor, deve ser uma luta grande ,mais tenha fé que sempre vc vai vencer e deixe não nada de ruim acontecer a vc, vc já é linda por conseguir vencer tudo isto que relatou!
    Um beijo e muita luz a vc!

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